24/01/2012

História das Calamidades - De Deo; De Natura; De Homine


§1
há uma palavra —um étymo (do grego: uma verdade)— que surpreende pelas contradições e paroxismos que fazemos depender da forma particular que dela utilizados: τ συμφέρον, o útil, o conveniente, quase como sinónimo de τ φελλον, o beneficiente, prestável, benfazejo. com esta palavra aliamos o verbo temporal συμφέρω, vulgarmente na forma impessoal συμφέρει, auxilia, junta, calha, convém, no sentido de duas coisas que estão bem uma para a outra e que portanto se juntam. desta palavra origem recebe uma outra, συμφορά, que no sentido imediato poderia ser apenas uma mera nominalização do dito συμφέρειν, não se desse o caso de, como qualquer pessoa que já pegou numa tragédia grega na língua original poderá bem atestar, συμφορά obter uma lógica nefasta: imediatamente συμφορά é a desgraça, é a calamidade, o infortúnio, já não aquilo que se junta (συμφέρει) porque πρέπει (porque se adequa) mas sim porque há alguma atração fatal enter o humano e a sua aniquilação, entre a felicidade que atrái a cólera, o magnetismo dos deuses vingadores, para os quais então de facto συμφέρει (é prestável) destruir-nos completamente, até ao último rasgo de sombra. συμφέρει, ajunta, é verdade, mas a quem? tal como a palavra latina simultates, a presença simultânea de dois, não é uma comunhão fraterna mas sim algo destruidor, assim também a συμφορά nos junta a nós e à morte, mas também a nós e aos deuses, na medida em que a nossa excessiva felicidade é o único engodo que temos à disposição para atrair os deuses que fogem, embora bem saibamos que tudo o que temos sacrificamos por esse instante em que nós e eles somos trazidos juntos e eles nos destroem. a desgraça, a συμφορά é o momento nítido do terrível olhar da divindade que já não desdenha destruir-nos.

§2
quando Thrasýmaco diz que τ δίκαιον τ το κρείττονος συμφέρον, não percebe o que diz e percebe. a justiça é a conveniência do mais forte. a justiça é o momento de encontro do mais forte consigo próprio, o momento em que tem o que merece, mesmo enquanto excluímos a helenicamente bizarra paixão pelo Juízo Final e pela novíssima aniquilação das almas. τ συμφέρειν é o momento em que os poderosos são postos à prova, e no qual contemplam nos olhos o deus do gesto. o momento em que ousamos arriscar tudo assentando sobre o nosso próprio valor é simultaneamente o instante da nossa glória máxima, da humanidade, e da virtude — dos vitia splendida – e ao mesmo tempo da συμφορά, do esmagamento por necessidade justo da nossa condição face à face ardente do deus que vive e é a Morte. os gregos conheceram-no sob muitas faces, sob sempre máscaras dúplices de esperança e de violência. conheceram-no sob a máscara da βρις, essa maior das helénicas ρεταί, esse amor erga vitam que apenas honra a mesma vita condenável, essa adpaixão que é a do Príncipe de Marrocos que ousa escolher o cofre do qual “Who chooseth me shall get as much as he deserves”, que se lança de cabeça para a frase de Unamuno, “se é preciso que morramos, temos ao menos que fazer com que isso seja injusto”, isto é, aceitar a συμφορά com olhos de quem percebe que isso não συμφέρει, aceitar o fogo na face de Deus e não desviar o olhar. conheceram-na ainda pela máscara de Sócrates, o demónio do Amor, o terror dos injustos — e convirá aqui lembrar que já no pensamento platónico e clássico os demónios são os entes que mediam entre “a outra terra e o outro céu”, sendo o amor a obra demoníaca por excelência, que dois entes liga, e que esta demonologia pagão de mensagem foi mantida até ao século IV, onde a sua cristianização por Pseudo-Dionísio Aeropagita transformou estes συμφέροντες, estes mediadores, estes demónios do espaço, naquilo que o cristianismo chamará anjops, anjos portanto que συμφέροντες τν συμφορν φέρουσιν, que juntam o que deve estar junto, a desgraça ao desgraçado · a intuição de Rilke já se entende: todo o anjo é terrível. E Sócrates do outro lado, unificador, criatura do silêncio e deus-patrono da adequação, que nunca hesita em pronunciar as aquém-palavras de maneira demasiado inaudível, apenas o bastante para se vislumbrar a catástrofe e pressentir a συμφορά prometida da justiça terrena, do mundo a ferro e fogo, da imanentização da calamidade das palavras para as almas. 

§3
há alguma coisa de inerentemente contraditório na existência de escritos mýsticos. como diz John Caputo, “tendo em conta que passam tanto tempo a dizer que o que narram é indizível, os mýsticos realmente falam que se fartam.” seja qual for a profissão de fé da mýstica em questão, todas aparentam almejar a uma tendência máxima, à qual nos habituámos a chamar unio mystica, experiência que seria a conjunção suprema entre o experimentador e o divino, em que se assemelhariam de tal forma um ao outro que deixaria de zer sentido falarmos de nós verbalmente: a unio mystica é também the annihilation of the self, em que a adequação gigantesca funde os dois num, de tanto que συμφέρουσιν um com o outro: isto sim é justo, isto sim é belo, e o summo bem talvez. o que implica esta união porém, o que fazemos com o comungar da alma — o comunicar da alma com o divino? destruimo-nos é certo, e isso poderia ser a temer, não fosse precisamente isso que buscássemos, o prescindir de nós para nos centrifugarmos em Deus. mas há que prescindir da amizade e da beneficiência em prol da faculdade de ver mais claramente. destruimo-nos a nós mesmos, é vero, mas destruimos de igual forma o deus que nos recebe, o qual violentamos até que nos aceite como a si: o deus, o mar imenso, é obrigado à força a aceitar-me como em si, e eu nele: mas já não sou em que vivo; nem vive ele.  no meio, onde nós somos e éramos, um Vazio. foi esse συμφέρειν que levou à maior possível das συμφοραί, como se apercebeu Nietzsche, que esse maior dos ateus Eckhart percebeu quando falou da mýstica suprema para além do êxtase, para além e depois daquele momento em que atingimos o Pai e o Filho, e em que neles somos já Um, e ousamos corajosamente ainda mais seguir virtute e canoscenza, mesmo que para isso tenhamos que prescindir do próprio deus para que o lançarmo-nos contra o o mundo, suas criaturas e criador, seja tão imenso que dele demos mão, e no desprezar amoroso de tudo o que se adequa por excelência completemos a nossa historia calamitatum.

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