§1
há uma palavra —um étymo (do grego: uma verdade)— que surpreende pelas
contradições e paroxismos que fazemos depender da forma particular que dela
utilizados: τὸ συμφέρον, o útil,
o conveniente, quase como sinónimo de τὸ ὄφελλον, o beneficiente, prestável, benfazejo. com
esta palavra aliamos o verbo temporal συμφέρω, vulgarmente na forma impessoal συμφέρει,
auxilia, junta, calha, convém, no sentido de duas coisas que estão bem uma para
a outra e que portanto se juntam. desta palavra origem recebe uma outra, ἡ συμφορά, que no sentido imediato poderia ser apenas
uma mera nominalização do dito συμφέρειν, não se desse o caso de, como qualquer
pessoa que já pegou numa tragédia grega na língua original poderá bem atestar, συμφορά obter
uma lógica nefasta: imediatamente ἡ συμφορά é a desgraça, é a calamidade, o infortúnio, já não aquilo que se junta (συμφέρει) porque πρέπει (porque
se adequa) mas sim porque há alguma atração fatal enter o humano e a sua
aniquilação, entre a felicidade que atrái a cólera, o magnetismo dos deuses
vingadores, para os quais então de facto συμφέρει (é prestável) destruir-nos completamente,
até ao último rasgo de sombra. συμφέρει, ajunta, é verdade, mas a quem? tal como a
palavra latina simultates, a presença simultânea de dois, não
é uma comunhão fraterna mas sim algo destruidor, assim também a συμφορά nos
junta a nós e à morte, mas também a nós e aos deuses, na medida em que a nossa
excessiva felicidade é o único engodo que temos à disposição para atrair os
deuses que fogem, embora bem saibamos que tudo o que temos sacrificamos por esse
instante em que nós e eles somos trazidos juntos e eles nos destroem. a
desgraça, a συμφορά é o momento nítido do terrível olhar da divindade que já não desdenha
destruir-nos.
§2
quando Thrasýmaco diz que τὸ δίκαιον τὸ τοῦ κρείττονος συμφέρον, não percebe
o que diz e percebe. a justiça é a conveniência do mais forte. a justiça é o
momento de encontro do mais forte consigo próprio, o momento em que tem o que
merece, mesmo enquanto excluímos a helenicamente bizarra paixão pelo Juízo
Final e pela novíssima aniquilação das almas. τὸ συμφέρειν é o
momento em que os poderosos são postos à prova, e no qual contemplam nos olhos
o deus do gesto. o momento em que ousamos arriscar tudo assentando sobre o
nosso próprio valor é simultaneamente o instante da nossa glória máxima, da
humanidade, e da virtude — dos vitia
splendida – e ao mesmo tempo
da συμφορά, do esmagamento por necessidade justo da nossa condição face à face
ardente do deus que vive e é a Morte. os gregos conheceram-no sob muitas faces,
sob sempre máscaras dúplices de esperança e de violência. conheceram-no sob a
máscara da ὕβρις, essa maior das helénicas ἀρεταί, esse amor erga vitam que apenas honra a mesma vita condenável, essa adpaixão que é a do
Príncipe de Marrocos que ousa escolher o cofre do qual “Who chooseth me shall
get as much as he deserves”, que se lança de cabeça para a frase de Unamuno,
“se é preciso que morramos, temos ao menos que fazer com que isso seja
injusto”, isto é, aceitar a συμφορά com olhos de quem percebe que isso não συμφέρει, aceitar
o fogo na face de Deus e não desviar o olhar. conheceram-na ainda pela máscara
de Sócrates, o demónio do Amor, o terror dos injustos — e convirá aqui lembrar
que já no pensamento platónico e clássico os demónios são os entes que mediam
entre “a outra terra e o outro céu”, sendo o amor a obra demoníaca por
excelência, que dois entes liga, e que esta demonologia pagão de mensagem foi
mantida até ao século IV, onde a sua cristianização por Pseudo-Dionísio
Aeropagita transformou estes συμφέροντες, estes mediadores, estes demónios do espaço,
naquilo que o cristianismo chamará anjops, anjos portanto que συμφέροντες τὴν συμφορὰν φέρουσιν, que
juntam o que deve estar junto, a desgraça ao desgraçado · a intuição de Rilke
já se entende: todo o anjo é terrível. E Sócrates do outro lado, unificador,
criatura do silêncio e deus-patrono da adequação, que nunca hesita em
pronunciar as aquém-palavras de maneira demasiado inaudível, apenas o bastante
para se vislumbrar a catástrofe e pressentir a συμφορά
prometida da justiça terrena, do mundo a ferro e fogo, da imanentização da
calamidade das palavras para as almas.
§3
há alguma coisa de inerentemente
contraditório na existência de escritos mýsticos. como diz John Caputo, “tendo
em conta que passam tanto tempo a dizer que o que narram é indizível, os
mýsticos realmente falam que se fartam.” seja qual for a profissão de fé da
mýstica em questão, todas aparentam almejar a uma tendência máxima, à qual nos
habituámos a chamar unio
mystica, experiência que seria a conjunção suprema entre o experimentador e
o divino, em que se assemelhariam de tal forma um ao outro que deixaria de zer
sentido falarmos de nós verbalmente: a unio
mystica é também the annihilation of the self,
em que a adequação gigantesca funde os dois num, de tanto que συμφέρουσιν um com o outro: isto sim é justo, isto sim é belo, e o summo bem talvez. o
que implica esta união porém, o que fazemos com o comungar da alma — o
comunicar da alma com o divino? destruimo-nos é certo, e isso poderia ser a
temer, não fosse precisamente isso que buscássemos, o prescindir de nós para
nos centrifugarmos em Deus. mas há que prescindir da amizade e da beneficiência
em prol da faculdade de ver mais claramente. destruimo-nos a nós mesmos, é
vero, mas destruimos de igual forma o deus que nos recebe, o qual violentamos
até que nos aceite como a si: o deus, o mar imenso, é obrigado à força a
aceitar-me como em si, e eu nele: mas já não sou em que vivo; nem vive ele.
no meio, onde nós somos e éramos, um Vazio. foi esse συμφέρειν que
levou à maior possível das συμφοραί, como se apercebeu Nietzsche, que esse maior
dos ateus Eckhart percebeu quando falou da mýstica suprema para além do êxtase,
para além e depois daquele momento em que atingimos o Pai e o Filho, e em que
neles somos já Um, e ousamos corajosamente ainda mais seguir virtute e canoscenza,
mesmo que para isso tenhamos que prescindir do próprio deus para que o
lançarmo-nos contra o o mundo, suas criaturas e criador, seja tão imenso que
dele demos mão, e no desprezar amoroso de tudo o que se adequa por excelência
completemos a nossa historia
calamitatum.