31/03/2018

Annunciation with zero point field

John Burnside (2005). Annunciation with zero point field in The Good Neighbour. Cape Poetry
Sitting up late in the dark
I think you're about to tell me
that story I've heard before 
of a creature pulled from the ice, or prised from a ditch,
its body a hundred years old, but the eyes intact
and hardly a trace of decay 
on the frost-white skin;
and later, how they cut along the spine
and found two spurs of cartilage above 
the shoulder blades: not wings,
or not quite wings,
but something like a memory of flight 
locked in a chamber of bone
it had barely abandoned.
Sitting up late at night, in a clouded room, 
I think you have something to tell
that I'd want to believe
no matter how improbable it seemed, 
but that was long ago
and anyhow
we have so much that seems improbable: 
the household we have in common
but don't quite share,
sub voce songs, the garden's unnamed roses, 
this angel that comes to our bed
in a shimmer of light
and hangs there, silent, waiting to be nourished. 
You'd think it would choose its moment,
flickering out of the light and assuming a form
or coming to rest for a while 
in muscle and tendon.
You'd think it was eager to speak
as if it had come 
for no other reason than this, its annunciation
life-size, in human terms - an impending birth,
or something else we understand as grace -
the word in its mouth like a plum that has almost ripened,
the sound it will make when it speaks
like falling rain;
but this is the probable world, this is ourselves,
and the one thing we know for sure is that everything comes
by chance, and is half-unwilling,
memory, love, the angel who cannot announce
the fact that, the moment it speaks,
it will fade to nothing.
I've seen it on occasion, like a bat
flicking from wall to wall, its wings like tar
in the yellowing darkness;
I've heard the creak and whisper of the night's
improbable apparatus, lacewings and frost
and starlight on the rooftops like a veil
but nothing has ever spoken, nothing has come
from the elsewhere I measure out in songs and dreams,
although I glimpse, in spite of what I know,
the guessed-at world where nothing has been said
but everything is on the point of speaking:
you in your chair, looking up from a half-read book
as the angel who cannot exist is replaced by the given,
the sullen gift of everyday events:
the promise of rain, a footfall, the dread of belonging.

29/03/2018

Fayruz e as Sinagogas de Jerusalém


Uma das canções mais notáveis da notável cantora libanesa Fayruz é aquela chamada 'Flor das Cidades' - Zahrat Al-Madā'en زهرة المدائن. Lançada pela primeira vez em 1972 com letra dos irmãos Rahbani, ela é simultaneamente um lamento pela queda de Jerusalém nas mãos do exército israelita, e uma exortação à sua reconquista. Será impossível saber qual o peso que a canção terá tido nos esforços desastrosos que levaram à Guerra do Yom Kippur em 1973 - Abi Samra conta que "as emissões de rádio do mundo árabe tocavam a música incessantemente" nas vésperas do ataque.


A canção é, inevitavelmente, convictamente, anti-zionista. Mas existem certas ambiguidades respeitantes àquilo que ela advoga. Simples, e aceitável no abstracto, poderia ser considerá-la simplesmente na linha de que Jerusalém é uma cidade árabe e, como tal, pertence aos árabes e não aos judeus. Esta leitura ganha alguma tracção devido aos versos que clamam !القدس لنا, البي لنا - 'Jerusalém é Nossa, Belém é Nossa!'. Mas quem é o "nós" nesta frase? Não são certamente os "Muçulmanos" - afinal de contas Fayruz era, como é sabido, parte importante da poderosa minoria cristã do Líbano, e a canção está repleta de referências à tradição Cristã - وجهان يبكيان - الطفل في المغارة و أمه مريم  - 'a criança na gruta, e a sua mãe, Maria - duas faces que choram'.

Que estas referências não dizem respeito apenas aos elementos cristãos do Islão (pois Maria é mencionada 54 vezes no Corão) é-nos explicitado pelos versos que me ocupam a escrever este pequeno texto:

عيوننا إليك ترحل كل يوم
تدور في أروقة المعابد
تعانق الكنائس القديمة
وتمسح الحزن عن المساجد

os nossos olhos viram-se para ti a cada dia
vagueiam pelas galerias dos [TEMPLOS]
abraçam as igrejas antigas
e enxugam a tristeza das mesquitas

A tradução acima citada, ou variações dela, é a versão comummente encontrada quer em livros académicos quer em traduções amadoras. É com base nela que Clive Holes pode dizer que a canção retrata "the ethereal, Classical Arabic 'Quds' [Jerusalém em Árabe], the "Flower of Cities", the city of millennia of Christian and Muslim history." A referência a igrejas e a mesquitas implicaria a dupla vertente da identidade árabe - cristã e muçulmana (passando em silêncio outras minorias da região, como por exemplo os Druze).

O ponto cego desta leitura é, inevitavelmente, os judeus de Jerusalém. Desde a destruição da cidade por Tito no século I que os Judeus não eram uma maioria na cidade. No entanto, mesmo desde essa altura, passando por toda a idade média, e até aos inícios do zionismo no século XIX nunca deixou jamais de haver uma comunidade judaica na cidade (a única excepção sendo, obviamente, os anos que se seguiram a 1099, quando os cruzados vitoriosos trucidaram os judeus e os muçulmanos de Jerusalém). A esta comunidade presente em toda a Palestina, pequena mas constante, sói chamar-se o "O Yeshuv Antigo" - são estes que se juntam às comunidades partidas em exílio de outros países do mundo árabe para formar as comunidades judaicas ditas Mizraḫi ou 'Orientais' (مشرقيون ou מזרחי).

O enigma que resta, porém, é ao que é que se referem os "templos" da tradução acima citada. A palavra Árabe é معابد muʿābed,  plural de معبد maʿbad. A raíz é perfeitamente compreensível, com o [ ʿ / b / d ] a significar "servir, adorar" (presente, por exemplo, em ʿAbd-ullah - 'O Servidor de Deus'). Com o prefixo "ma-" a significar "lugar", um "معبد maʿbad" é simplesmente um "lugar de culto", ou seja um templo. Este é o uso normal e imediato da palavra [Conferir]. Quem opta por esta interpretação entende que a Fayruz estava a enumerar. Os templos: As Igrejas, e as Mesquitas.

De igual forma, a palavra imediata em árabe para designar sinagoga é "كنيس kanīs ("lugar de reunião", a mesma raiz do hebraico Knesset כנסת - por sua vez, 'igreja' repete a raiz, mas no feminino: kanīsa كنيسة). O interessante é, obviamente, que há outras formas de designar sinagoga, e que uma delas, consideravelmente mais rara mas certamente atestada (e.g.) é, igualmente, "معبد maʿbad".

Será que isto é intencional? Que proporção de pessoas é que, ao ouvirem a canção, pensariam em sinagogas? A vasta maioria das traduções contemporâneas da música - e dos estudos, não escassos, que lhe são dedicados, parece entender "معبد maʿbad" como 'templo'. Dos vários textos que encontrei, apenas um (Massad 2005) entende que "the lyrics include reference to Jerusalem's synagogues as well as to its churches and mosques." É, de resto, incerto se essa seria a interpretação original da Fayrouz e dos irmãos Rahbani: é inescapável que a música, como foi dito acima, foi usada, e aparentemente composta, com motivos propagandísticos. Mas não é a mesma coisa clamar pela retirada do estado do Israel do que clamar pela expulsão dos judeus: a equação, falsa e imoral, de anti-zionismo com anti-semitismo é o grande projecto do estado de Israel contemporâneo.

Venho argumentar que, ao que parece, a intenção original da canção (abrindo as portas voluntárias a que me acusem de falácia autoral) pretendia com "معابد muʿābed" indicar as sinagogas de Jerusalém. Fayruz tem, ao longo da vida, uma relação íntima com a Jerusalém vivida, a Il'uds onde convivem, em ruas estreitas, os judeus das suas sinagogas tais com os demais cristãos e muçulmanos. E que essa relação é pelo menos tão próxima quanto a que ela tem com a "Alquds do espírito" são testemunho canções outras que versam sobre essa vivência comum, quotidiana e partilhada, como a Jerusalém Antiga - Al-Quds Al-Atīqa القدس الاتيقة (referindo-se à dita "Cidade Antiga" dividida entre os bairros das várias religiões) significativamente cantada em árabe coloquial em vez do árabe clássico da "Flor das Cidades".


Isso leva-me a crer que, ao contrário do que as leituras mais imediatas de 2018 sobre a canção parecem indicar, leituras que asseveram que não há referência a judeus ou sinagogas na canção, estão erradas. A implicação disto é que esta não é uma canção anti-semítica. É, sem qualquer sombra de dúvida, uma canção violenta, e, como dizíamos acima, militantemente anti-zionista. Mas ao encontrarmos interpretações que omitem as sinagogas da letra estamos a aprender, muito menos sobre a música do que sobre quem a está a usar de forma anti-semita - ou pelo menos a aceitar jogar com o baralho deles. A começar, claro, pelo próprio Estado de Israel, o qual, ao equiparando anti-semitismo com anti-zionismo, se tornou efectivamente numa das maiores fábricas de anti-semitas em existência, ao declarar ao mundo que as acções duma ideologia política colonialista devem ser identificadas com as acções de todos os judeus.

Essa ideologia tem de ser combatida. É demasiado útil à injustiça que um ideal nobre e necessário seja associado com o ódio racial mais abjecto. Um dos lugares onde o podemos fazer é precisamente aqui: na tradição de difícil, sempre diferida, mas sonhada convivência que músicas como esta podem na realidade confessar e professar, resgatando a letra e entregando-a a ela mesma.