A ideia de que a um modo de produção (capitalismo, feudalismo, esclavagismo) não corresponde apenas uma forma de exploração de mais-valia não é particularmente nova, mas costuma ser acoplada com a ideia de que há uma correspondência quase orgânica entre modo de produção e forma de exploração, e que, em condições de estabilidade, tendem à coincidência. Por outras palavras, que num modo de produção feudal (ou “tributário” - John Haldon) houvesse trabalho assalariado é algo que ninguém disputa, mas avança-se que seria lateral, insignificante, precisamente porque haveria uma falta de concatenação entre o modo de produção e essa forma de produção, e que as forças de produção ou a acumulação não estariam ‘ainda’ suficientemente desenvolvidas para incentivar à disseminação de um modo de exploração alternativo. Um processo revolucionário, como foi o que levou o fim do feudalismo e à ascensão da burguesia como classe dominante, pautar-se-ia por um movimento duplo: o triunfo duma classe, e a predominância da forma produção correspondente: para o caso, à ascensão da burguesia corresponderia o trabalho assalariado.
Assim sendo, o projecto encetado por Jairus Banaji de dissociar o modo de produção das formas de exploração tem, como todos as genuínas análises históricas marxistas, conclusões que em muito extravasam o problema do dito “debate da transição”. O que permite entender é que, se a um modo de produção corresponde, sim, a ascensão duma classe e, concretamente, uma alteração nos beneficiários principais ao nível da distribuição da mais-valia produzida socialmente (vide Grundrisse), confundimo-nos se afirmarmos que teremos, necessariamente, uma alteração das formas de produção. É este o problema que subjaz ao grande mal-entendido que subjaz ao reduzir o pensamento do Marx à narrativa expressa no Volume 1 do Capital: apesar de afirmar que estamos a investigar a génese do capitalismo e a ascensão da burguesia, estamos na realidade a analisar um tipo específico de capitalismo, o capitalismo industrial, ao qual responde, sim, a ascensão do trabalho assalariado como forma de exploração predominante - mas não necessária.
Descartar essa identificação permite perceber que a questão do “debate da transição” foi mal colocada. A burguesia tem muitas faces, sempre teve. ‘A Luta de Classes em França’ é talvez o primeiro documento marxista onde essa multiplicidade aparece em primeiro plano, por sinal de forma muito mais caleidoscópica que a visão expressionista que recebemos do ‘Manifesto’. O triunfo da burguesia industrial é algo que não acontece completamente em parte nenhuma, mas mesmo assim só acontece desfasadamente (nos EUA, a burguesia industrial que extrai mais-valia através de trabalho assalariado triunfa na Guerra Civil sobre a burguesia agrária que extrai mais-valia através de plantações capitalistas que extrai mais-valia através de trabalho escravo, por exemplo (extração de mais-valia através de trabalho-escravo sendo algo que, segundo uma leitura não-histórica ‘O Capital’, seria uma contradição de termos), e que na Europa só se dá na sequência da Crise de Crédito de 1873 que origina a dita “Longa Depressão”.
O entendimento de que a luta de classes é múltipla e de que a solidariedade de classe da burguesia consegue ser tão quebradiça quanto a que vemos no proletariado permite-nos entender a evolução do capitalismo em que, sem que haja uma alteração profunda da classe dominante, diferentes burguesias ascendem e diferentes formas de exploração são incentivadas e resistidas, e diferentes segmentos do proletariado são projectados para condições de desumanização ou, em condições positivas de luta de classes, reagem e debilitam os capitalistas responsáveis pela sua exploração, permitem a ascensão de outros capitalistas. As grandes concentrações de capital industrial da era de ouro do capitalismo ocidental (1945-1970~) jazem em ruínas e, se muitas vezes foram vencidas e substituídas por outras numa deslocação geográfica de concentração alimentada pela deslocação de capital para outras fixações geográficas (a China principalmente), a verdade é que a muitas dessas deslocações de capital não correspondeu uma vitória do capitalismo industrial dum qualquer outro país, mas sim a ascensão dum qualquer outro segmento da burguesia.
A ascensão do neoliberalismo - com a sua filosofia sidekick, o pós-modernismo - é apenas o triunfo da burguesia financeira, associada naturalmente à mais veloz das formas que o capital é capaz de assumir, a saber o capital em bolsa de valores, capaz de estar em movimento literalmente à velocidade da luz por fibra óptica. O trabalho assalariado continua potente, mas é perigoso, talvez mesmo errado, afirmar que este continua a ser a forma dominante de extracção de mais valia praticado pelo segmento hegemónico da burguesia. Com a capacidade de movimentar capital a velocidades meteóricas e, com isso, de controlar o acesso ao crédito, empréstimos, necessários para manter em activo todos os investimentos de capital fixo em fábricas, plantações, poços, etc, o capital financeiro é capaz de ditar as suas leis ao capital industrial. Entre outras, fá-lo reduzindo a margem de lucro realizado ao nível no ponto de produção de mercadorias (ou seja, reduzindo a taxa de lucro que o capitalista industrial é capaz de captar/roubar ao operariado fabril), e transportando essa margem para um qualquer outro ponto de realização. Mas qual?
Antes de responder é preciso recordar algo crucial: o marxismo permite-nos entender que o verdadeiro valor, uma vez dissipado o fetichismo da mercadoria, uma vez reduzidos a nada os fantasmas do mérito e do capital, é produzido por quem trabalha. Mas a lógica interna do capitalismo não opera nessa lógica: se o valor é, segundo a definição do Capital, “tempo de trabalho socialmente necessário”, e, dada o desenvolvimento desigual que vigora no globo - desigual em termos de investimento de capital fixo, de aparato legal, de superestrutura -, então o trabalho rende mais, ou menos, conforme a sua localização e conforme o capital investido nos meios de produção a que é aplicado.
Por outras palavras, a soma do valor duma mercadoria produzida é, objectivamente - uma vez operada a desmistificação que o marxismo nos permite -, a soma de todo o trabalho que nela entrou, quer directamente enquanto força de trabalho quer trabalho anterior, congelado em modos de produção e recursos, incluindo os recursos arrancados à natureza, nunca gratuitamente, e o trabalho de reprodução social, maioritariamente encetado por mulheres, e quase nunca pago. Mas o modo de produção capitalista só é capaz de acumular porque ofusca inúmeros pontos desse circuito: uns paga-os abaixo do seu verdadeiro valor (como o trabalho assalariado), outros simplesmente passa em falso e nem sequer reconhece a sua função no ciclo de produção (como o trabalho reprodutivo feminino e a exploração de recursos naturais). Dessas invisibilizações nasce a mais-valia. Do roubo e acumulação da mais-valia nasce o Capital.
Para a discussão em curso o que importa perceber é que a distribuição de cada elemento desse ciclo não depende apenas do investimento em capital fixo etc, mas tanto - ou mais até - do avanço ou recuo da luta de classes em cada instância ou poiso que o capital faça ao longo do percurso. Historicamente, não houve momentos mais consequentes na luta de classes do que a derrota desferida contra o sexo feminino com a instauração da família, e a derrota história encetada pela burguesia europeia contra as populações africanas, americanas, e do Sudeste asiático. Tanto numa como noutra, os homens num lado, a burguesia no outro, ainda não pararam de ganhar.
Dito isso, como todas as lutas de classe, é um conflito constante e com resultados desiguais conforme todas as condições que tornam a vida humana variegada e indeterminada. Uma das consequências dessa luta de classes é que a burguesia teve de ceder em vários pontos, e conceder fatias maiores da mais-valia roubada a populações - normalmente, a populações que lhe estavam mais geograficamente próximas e lhe eram mais perigosas fisicamente. A progressiva melhoria das condições salariais no Primeiro Mundo face ao terceiro mundo, pelo menos em termos meramente de volume salarial (algo não despiciendo numa economia globalizada, foi compensada pelo acréscimo na exploração do Terceiro Mundo. É certo que pintar isto meramente como uma função da resistência ocidental seria naif: tão ou mais importante é necessidade da burguesia de gerar um mercado de escoamento de produtos capaz de comprar e consumir e, lá está, realizar o capital investido e transformá-lo em mais-valia.
Uma das consequências pertinentes é que esta alteração do volume de mais-valia devolvida nas diversas paragens leva também a um incentivo à alteração nas formas de exploração. É certo que o modelo de trabalho assalariado não perde totalmente a relevância uma vez abandonado o ponto de produção industrial, já que portos, grandes armazéns, etc, continuam a ser eminentemente importantes para a circulação de mercadorias, e todos eles postulam um grande investimento de capital (se bem que não tanto quanto o fabril, o que permite a burguesia mercantil, aliada à burguesia financeira contra a burguesia industrial, estando esta cada vez mais capturada por elementos nativos que pertencem a países contra os quais está em jogo uma guerra não só comercial mas também imperial pelo controlo dos pontos de realização de mais-valia). Mas uma vez realizadas as grandes viagens transoceânicas, e chegado ao ponto de venda e de distribuição, o investimento em grande capital torna-se progressivamente menos importante.
Pertence ao génio da burguesia comercial ocidental a intuição de que a sua aliança com a burguesia financeira poderia permitir mais uma derrota sobre a classe trabalhadora através da exteriorização dos custos da distribuição (ou seja, fazendo a classe da trabalhadora dona dos seus próprios meios de produção, como carros, bicicletas, bancas de venda, etc, até mesmo casas com serviços de call-center em outsource, um padrão que a pandemia acentuou, com rendas, despesas e investimento de capital anteriormente custeados pelas empresas, agora cada vez mais custeados pelos próprios trabalhadores a partir da sua própria casa). Conseguiu isto através da abertura de linhas de crédito à classe proletária, subsidiado directamente pelas ruinas do estado social (Lucí Cavallero & Verónica Gago 2021). Curiosamente, isto traz-nos a um ponto enigmático, pois segundo o esquematismo marxista, a posse de meios de produção deveria servir para a distinção entre burguesia e proletariado. Mas o que vemos surgir - ou seja, a forma de exploração apropriada a uma época de domínio do capitalismo comercial - não é uma pequena-burguesia “das aplicações” (UberEats, Glovo, etc), mas sim algo diferente, que somos capazes de entender apenas se entendermos a lógica da coexistência de várias formas de exploração. A classe dominante tem todo o interesse em ofuscar esta alteração, e dissimula este processo com o papel celofane do esquematismo marxista: se detém meios de produção é capitalista, ou melhor, no lingo, é “empreendedor”. Claro que, se isto foi planeado, não há qualquer ilusão sobre a possibilidade de ascensão de classe porque, nesta nova classe, o acesso aos meios de produção não é total ou imediato mas sim mediado pelo mecanismo da dívida e a ameaçada permanente do incumprimento da dívida e subsequente expropriação.
Curiosamente, essa situação tem ecos que a aproximam ao decorrer dos acontecimentos no colapso das relações feudais narrado nos últimos capítulos do Capital, onde o suposto triunfo do campesinato na senda da Peste Negra levou a uma captura das terras previamente detidas em relações feudais e permitiu que estas fossem trabalhadas a título privado e para lucro próprio, mediante pagamento de rendas, mas isso teve como consequência, dado que o valor das rendas era controlável pelos detentores originais, a expropriação de vastas camadas do campesinato e a expulsão das suas terras.
Regressando à análise inicial da maneira como modos de produção e formas de exploração se enredam, o que vemos é que o modo de produção dominante, subordinado à acumulação de capital através da extracção de mais-valia - o capitalismo - não tende, ao contrário do que seria de pensar se lermos o volume 1 do Capital como uma história sequencial de todo o capitalismo, em vez de como um ângulo oblíquo sobre o processo interno do capitalismo inglês. Walter Johnson (Capitalism and Slavery 2004) comete este erro explicitamente, pensando que denunciava Marx por começar com “casacos de linho” (o exemplo tipo d’O Capital) em vez de com algodão, a exportação por excelência das plantações esclavagistas. Mas, mais do que meramente presentes, as plantações movidas a trabalho escravo ocupam um papel central no pensamento de Marx sobre o capitalismo, desde pelo menos 1847, onde, em A Pobreza da Filosofia, relata como “A escravatura directa é um eixo da indústria burguesa tanto quanto o são a maquinaria, o crédito, etc. Sem escravatura não há algodão; sem algodão não há indústria moderna. É a escravatura que deu às colónias o valor que estas têm; foram as colónias que geraram o comércio global, e é o comércio global que é a pré-condição da indústria em larga-escala. Daqui se conclui que a escravatura é uma categoria económica da maior importância.”
É dúbio que tenham sido as colónias a “gerar o comércio global” (cf Banaji 2019), mas tudo o resto aponta na direcção correcta: num modo de produção podem coexistir várias formas de produção em homeostase, não é como se as plantações tivessem de ser abolidas para “libertar as forças produtivas” - antes as plantações foram abolidas devido à luta de classes levada a cabo por inúmeros escravos e escravas, não só no Haiti mas também na América Latina e nas plantações do Sul dos EUA. É errado atribuir o fim da escravatura apenas ao desenvolvimento interno do capitalismo. Por muito que houvesse segmentos da burguesia, nomeadamente a burguesia industrial, que tinha interesse em superar a burguesia das plantações esclavagistas e superá-las (fazendo com isso impor o seu modelo de exploração com base no trabalho assalariado), esse argumento concede à burguesia uma omnipotência de que ela carece e uma sagacidade de que nunca foi portadora. As contradições do capital são inúmeras, inúmeros são também os pontos de ruptura possíveis, e inúmeras são as possibilidades de resistência. Uma política revolucionária nada ganha em magnificar o inimigo a ponto de lhe reconhecer capacidades sobrehumanas de subverter toda a resistência.
A conclusão que se impõe é que a luta de classes (se é que merece ser assim chamada) levada a cabo no seio da própria burguesia é simultaneamente um lugar de disputa quer um lugar de agravamento da exploração da classe trabalhadora. A competição entre burgueses é sempre feita com vista a enfraquecer um lado, mas nunca em benefício de quem é explorado, e, embora essa fraqueza possa ser aproveitada, urge não esquecer que ela só existe com o fim de acentuar a exploração e a expropriação de mais-valia o mais possível, mesmo se essa expropriação for levada a cabo noutro ponto do circuito de produção e realização de valor.
A outra conclusão é que a relação de trabalho assalariado com capitalismo é, no mínimo, ténue. Não vai acabar enquanto houver necessidade de fábricas e de grande aplicação de força de trabalho, mas não há nenhuma contradição em termos, e certamente nada de emancipador ou progressista, num mundo onde a geração de valor deixou de acontecer principalmente ao nível da produção, já que as fábricas foram automatizadas etc, e onde passou a ser feita noutros pontos do circuito, como a distribuição. Por ora a desigualdade premente entre primeiro e terceiro mundo salvaguardam o capitalismo duma evolução plena nesse sentido, mas a transformação em curso na China há pelo menos uma década de uma economia de mão-de-obra intensiva numa economia de capital intensivo augura (por muito que uma parcela significativa do trabalho esteja a ser movido para países adjacentes como o Bangladesh) a possibilidade de um mundo onde o sector industrial decresça para níveis inauditos desta o brotar da revolução industrial. Ninguém deve crer que isso acarretaria consigo um aliviar da exploração ou da apropriação de mão-de-obra. Mas uma política de socialismo revolucionário deve estar pronta para largar o fetichismo do obreirismo e entender que à capacidade de adaptação do capital deve responder uma capacidade de crítica interna desse mesmo capital com vista a identificar os seus pontos de contradição, de crise, e de ruptura. ☭